A indústria imobiliária apresenta diversas particularidades. A começar pelas regras contábeis. Atributos importantes para a maioria das indústrias como economias de escala e diversificação geográfica simplesmente não funcionam na indústria de construção. Assim, analisar as empresas do setor com a mesma ótica utilizada para outros segmentos pode redundar em conclusões equivocadas. O que deve ser observado ao analisar o setor? Quais conclusões podemos tirar? A teoria de finanças consegue explicar o segmento ou estamos diante de um paradoxo?
Se for perguntado a 100 presidentes de empresas se gostariam de aumentar a quantidade vendida para diluir seus custos fixos, a grande maioria responderá sim. Esse também foi o discurso das construtoras após abrirem o capital. Mas, os ganhos de escala se revelaram uma falácia. Cada construtora possui um número ótimo de canteiros de obra que maximiza sua margem. Superado esse limite, a produtividade e as margens caem. O discurso atual reconhece essa restrição ao crescimento.
Outro problema foi a diversificação dos projetos pelo país. A tese de a expansão geográfica ser benéfica por promover a diversificação de risco não se mostrou verdadeira. A distância entre a decisão central e o canteiro de obras foi fatal. Além disso, há particularidades locais em relação a registros, relacionamento com as Prefeituras e gosto dos consumidores, por exemplo. Construtoras locais acabam sendo tão ou mais competitivas que as forasteiras.
O negócio possui enorme dependência a variáveis macroeconômicas como juros e renda. O sucesso de um empreendimento é positivamente relacionado à renda e inversamente aos juros, pois taxas elevadas encarecem a obra e retiram renda disponível dos compradores. Sendo assim, as empresas, e como consequência as ações, são pró-cíclicas. Apresentam bom desempenho em momentos de prosperidade, mas sofrem em recessões como a atual. Essa característica eleva a volatilidade das ações o que deveria afugentar investidores mais sensíveis a oscilações.
As demonstrações contábeis de qualquer empresa refletem o passado. Ao olharmos as demonstrações de resultado relativas ao segundo trimestre de 2017 da Vale, podemos saber a receita, os custos e as despesas da mineradora no período. Já na construção civil, a contabilização é diferente. Vamos considerar uma construtora que possuísse apenas um projeto: uma torre de apartamentos. Essa construção demorará três anos para ser levantada. Pela regra tradicional, a receita só poderia ser reconhecida quando os apartamentos fossem entregues aos clientes. Assim, a empresa não teria receita e custos por três anos. Mas não é isso o que ocorre. Conforme a obra avança, as vendas realizadas se convertem em receitas no mesmo ritmo das obras. Como a obra ainda está em curso, a margem bruta gerada (a diferença entre receita e custos) ainda é uma estimativa da administração para aquele projeto. A margem efetiva do projeto só será conhecida no término da obra quando se saberão todas as receitas e custos do empreendimento.
Além disso, várias informações utilizadas pelos investidores e analistas não são auditadas como o valor de venda dos estoques e a margem das obras em andamento (margem REF). Em reunião recente, um diretor de uma companhia disse que os estoques prontos a valor de mercado servia de base para o inicio de uma negociação com o cliente, mas descontos poderiam ser concedidos em determinadas situações. Sendo assim, o valor esperado da venda tende a ser inferior ao reportado. Utilizar o valor do estoque divulgado é superavaliá-lo.
Essa discricionariedade da administração pode gerar sério conflito de agência, quando os interesses dos acionistas não estariam alinhados ao dos gerentes. Imagine que a administração receba incentivos anuais. Ela pode ser otimista, orçando uma margem elevada no início do projeto. O desempenho operacional de curto prazo será satisfatório o que gerará bônus aos gestores. Mas, no fim das obras, a margem pode ser bem inferior à estimada. Os distratos também podem causar distorções. Com o cancelamento da venda, a receita e os custos associados devem ser estornados maculando a margem. Dessa forma, os bônus passados foram injustamente pagos.
O analista deve ter um olhar diferente para o setor: (i) reduzir o peso dado as demonstrações contábeis, (ii) priorizar a análise “top-down” em decorrência do peso das variáveis macroeconômicas sobre os resultados, (iii) não qualificar as empresas do setor como de crescimento em decorrência das deseconomias de escala e (iv) olhar com lupa a geração de caixa.
E a tese de investimento? Se o setor apresenta restrição ao crescimento, o valor para o acionista deve vir da distribuição do caixa. Em outras palavras, o que torna essas ações atrativas deveria ser o pagamento dos dividendos, característica das ações defensivas. Contudo, caímos em um paradoxo, pois as ações do setor não são defensivas, pois dependem fortemente dos ciclos econômicos. Conclusão: o setor consegue desestabilizar até a teoria de finanças. O cineasta Tim Burton faria um bom filme com esse estranho e peculiar personagem.
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Exato!! Voltamos sempre a olhar o caixa…
muito peculiar sua abordagem!
Super interessante e educativo para um leigo como eu. Gostei.
Obrigado, Marcelo!
Boa explicação e independente do “momento atual”, o mercado imobiliário já viveu momentos similares a exemplo do Plano Collor, portanto a visão do empresário incorporador e/ou construtor deve estar pautado na pesquisa (pré e durante) , planejamento para, no mínimo 5 anos, estudos, desenvolvimento, implantação e entrega do empreendimento.
em todo lugar do mundo o mercado imobiliário obedece aos seus ciclos. acontece que as passagens dos ciclos não são imediatas pq ng pode responder a um aumento de demanda da noite pro dia (empreendimentos demoram a serem concluidos).
mas qnd o ciclo é de expansão, tudo parece perfeito: a demanda ainda esta sendo atendida, incorporadoras continuam adicionando à oferta, os preços vão subindo… é aqui que aparece o ponto principal do texto do André: o desalinhamento entre gestor e acionista. com a acesso a capital e o interesse pessoal, os gestores vão atrás de sua própria aposentadoria alavancando em projetos que destroem valor como imóveis que não serão vendidos e aquisicões caras. o bom gestor é aquele que, conhecendo as caracteristicas da sua industria, cresce de forma sustentavel. o mal gestor é aquele que faz sua poupanca enqnt a carruagem nao vira abobora. A PDG da um case nisso.
entender os ciclos é interessante mas investir por ciclos tem um pouco de “market timing”, coisa q nao me agrada. ainda acho que as demonstracoes financeiras sempre sao o melhor caminho mas elas são apenas informativas. auditores e contadores não substituem o trabalho do investidor diligente, que deve fazer os ajustes e descontos necessários.
Excelente texto.
Obrigado!
Sou um médio incorporador/construtor regional. Sua análise é muito apropriada. Na minha cidade as grandes vieram, pós abertura de capitais, fizeram uma enorme bagunça no mercado local, tentaram impor cultura diferente dos hábitos locais e foram quase todas embora. Sua análise contábil é muito apropriada, é fácil criar expectativa de resultados que nunca irão se concretizar. Campo ótimo para vender sonhos. Um “power point” bem elaborado – torturados os números – cria um cenário maravilhoso irrealizável, ratificado pelos balaços por um bom período de tempo. A amarga realidade chega bem tarde, quase no final do empreendimento, quando nada mais há por fazer.
Oi Antonio
Bom termos um olhar de quem atua no setor.
Abraço
André
Excelente. Muitíssimo oportuno esse artigo para qualquer investidor ou analista que se aventure no setor!
Obrigado!
“Construtoras locais acabam sendo tão ou mais competitivas que as forasteiras.” Isso realmente é um fato no Brasil…
Parabéns pelo texto…nunca me empolguei com as empresas desse setor (nem quando estavam ” bombando”)…
Obrigado!
Muito oportuna a matéria. Sou incorporador e vivo diariamente essa controvérsia. Alguns consultores generalistas, que não atuam especificamente na área de incorporação imobiliária, insistem em orientar a gestão pelos resultados contábeis que não traduzem a complexidade dos negócios imobiliários. Alguns bancos já perceberam a importância de entenderem as particularidades do negócio e considerarem menos os relatórios afetados pelos critérios contábeis. Concordo com a importância de ficar de olho no caixa, além de muita sensibilidade para o mercado. Não quero ser o vilão do filme do Tim Burton.
Prezado André Rocha !
Você argumenta com sólido conhecimento de causa deste segmento, com exemplos reais.
Aprecio sua sinceridade e coragem.
Desejo conhecer outras de suas teses.
Cordialmente
Ademar Venâncio
Obrigado, Ademar