Uma cirurgia ou o reflexo do modo de pensar do analista de ações na vida privada

Em novembro, percebi uma saliência no abdômen. Sentia dores na região também. Após a visita ao médico, o diagnóstico: uma hérnia umbilical. Cirurgião escolhido, operação marcada, passei a analisar a situação com o mesmo paradigma mental que utilizo para avaliar as companhias. O leitor deve estar se perguntando: o que um problema pessoal tem a ver com um blog sobre o mercado acionário. Explico. Percebi que, embora a profissão de analista tenha me dado instrumentais importantes para encarar o dia a dia, não funcionou para uma questão relacionada à saúde. Quais as técnicas da análise fundamentalista e a experiência de mercado têm contribuído positiva e negativamente para a minha vida privada?

Quando iniciei a carreira, achava esnobismo os veteranos utilizarem expressões em inglês. O fluxo de caixa é DCF (“discounted cash flow”); o retorno com dividendos, “dividend yield”;  os salários e bônus são tratados como “total compensation”; a receita, “top line”; o lucro ou prejuízo, “bottom line”; a geração de caixa, “Ebitda”; quando a empresa decide investir em uma nova unidade fabril sem recorrer a aquisições de concorrentes estamos diante de uma operação “greenfield”; se geração de caixa empata com os custos, temos uma situação de “breakeven”; a tese de investimento chama-se “investment case” e por aí vai. A lista é infinita.

Com o tempo, esses anglicismos se entranham na gente e passamos a utilizá-los na vida cotidiana sem perceber. Se formos convidados para uma festa chata, é normal dizermos que a festa só terá “downside” , coisas ruins como pessoas chatas, música irritante e comida gordurosa. Se a esposa começa a contar um caso nos mínimos detalhes, é provável que o analista ansioso diga para ela ir direto ao “bottom line”, ou seja, chegar logo à conclusão. Se a carreira tem tanta influência sobre o linguajar o que dirá sobre o modo de pensar.

Algumas técnicas de investimento têm sido importantes na minha vida financeira, por exemplo. Para o meu perfil de investidor, a diversificação faz todo o sentido. Como não seguir o instinto de manada foi crucial para que comprasse ações baratas durante a crise de 2008 e obtivesse bom lucro. Pensar no longo prazo foi importante para ter comprado o título público NTN-B com vencimento em 2024, remunerando a juros reais de até 10% (mesmo após a alta recente, o investidor ao comprá-lo hoje recebe cupom ao redor de 6%).

E qual a analogia entre a operação da hérnia e a análise de empresas? Primeiro, escolhemos o cirurgião que irá nos operar. Como o analista é cético, ele buscará referências junto aos outros profissionais e a antigos pacientes, olhará seu currículo e sua experiência. Não é muito diferente da análise de uma empresa. Ele procurará ver o currículo do executivo chefe e o histórico de resultados da empresa.

Mas em relação à elaboração de cenários futuros, a abordagem tem de ser diferente. Quando começamos a avaliar uma companhia traçamos três cenários: o otimista, o neutro e o pessimista. Se, mesmo no cenário pessimista, a empresa apresentar resultados e mostrar potencial de valorização, a ação deve ser adquirida. Mas uma cirurgia traz riscos – no limite a morte -, logo pensar no desfecho pessimista nessa situação pode deixar o paciente mais nervoso do que deveria e comprometer a própria recuperação. Na análise de empresas, o analista deve ser conservador (em outras palavras, observar os possíveis riscos), mas frente a uma questão de saúde essa abordagem não ajudará em nada.

Feita a cirurgia, é normal que surjam dores. Os dias passam e as dores permanecem. Surge a dúvida: por quanto tempo? Será que voltarei a não sentir dores? O futuro é visto sob a ótica do presente. O hoje contamina o amanhã. A extrapolação do presente no futuro, embora seja um erro, também é feita quando projetamos os resultados de uma empresa. Empresas que tenham bons resultados tendem a ser bem avaliadas pelo analista. Em alguns casos, o profissional chega a ser negligente com as premissas futuras. Por outro lado, ele tem receio de recomendar empresas que apresentem prejuízos. Será que essas perdas não continuarão indefinidamente? Mesmo na vida privada, embora pensar o futuro seja importante para o planejamento, ele impede de se viver o presente de forma mais intensa

Após a cirurgia, aprendi que as técnicas de análise ajudam bastante na vida diária, mas, em algumas ocasiões, esse modo de pensar é prejudicial.

5 Comentários

  1. Gostei,

    Já tenho pensado assim, o presente e o futuro, tenho preferido o presente. Ou seja, conforme já ensina livro sobre estratégia de empresas e quem sabe da vida “O grande problema do executivo não e decidir o que a sua empresa deve fazer no futuro, e sim o que deve fazer hoje para estar preparada para as incertezas do futuro” Lobato et al., (2006), p. 30. Tenho vivido assim de forma universal, ou seja, na empresa, nos negócios privados, e na vida social.

  2. A análise financeira, tal como é realizada na maior parte do mercado hoje, é baseada em um pensamento newtoniano e em uma mentalidade curtoprazista. Se essa análise não serve nem para investimentos, não vai servir para outras dimensões da nossa vida. Quando o mercado aprender o que é pensamento sistêmico, isso vai mudar. Alguns já estão começando a entender.

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